ANTIGO TESTAMENTO
INTRODUÇÃO
O Antigo Testamento é uma coletânea de escritos que os judeus chamam “a Lei, os Profetas e os Escritos” (abreviado conforme o hebraico, a Tanak), ou simplesmente “ a Escritura”. Quando os cristãos consideraram que suas próprias escrituras “apostólicas” expressavam as disposições de uma “Nova Aliança” (ou “Novo Testamento”) entre Deus e seu povo, denominaram as escrituras anteriores de Antigo Testamento, ou seja, a Antiga Aliança.
A presente Introdução quer apresentar o ambiente geográfico e histórico no qual nasceu o Antigo Testamento, explicar como foram reunidos os livros que o constituem, como nos foram transmitidos e qual seu significado para o crente de hoje.
A) A TERRA DA BÍBLIA
1. O “Crescente e Fértil”. A terra de Israel, chamada na Bíblia terra de Canaã e pelos geógrafos antigos e modernos, “Palestina” (Isto é, “terra dos filisteus”), é um pequeno setor de um vasto conjunto geográfico em forma de meia-lua denominado o “Crescente Fértil”. Essa região tem, de fato, a forma de um arco cujo centro se situaria no deserto da Síria e ao norte do deserto da Arábia, regiões quase impenetráveis na Antiguidade. O próprio Crescente é uma zona irrigada por rios mais ou menos importantes: Tigre, Eufrates, Oronte, Litâni, Jordão. A essa região é preciso acrescentar o importante vale do Nilo, uma espécie de prolongamento, embora os geógrafos não o situem no “Crescente” propriamente dito. A margem interna do Crescente é formada por regiões semidesérticas que fazem a transição com o deserto, enquanto no exterior se estendem maciços montanhosos: Planalto Iraniano, Armênia, Tauro. Deste Crescente, a Síria e a Palestina formam a parte mais estreita: entre o Mediterrâneo e o deserto, ocupam um corredor de menos de 100 quilômetros de largura, que faz a ligação entre a Mesopotâmia e o Vale do Nilo.
Esse conjunto abrigou desde cedo uma importante população e viu desenvolverem-se vários grandes focos de civilização. As mais importantes concentrações foram feitas no Vale e no Delta do Nilo e nos cursos inferiores do Tigre e do Eufrates. Entre estas duas extremidades, a circulação era intensa. A parte principal seguiu o Eufrates, atravessava a Síria por Palmira e Damasco, a Palestina por Meguido e Jafa, para atingir o Egito por Gaza e Rafia. Em Damasco, podia-se tomar, margeando o deserto, a rota trans-jordaniana, que permitia chegar à Arábia por Eliat, e no Egito pela península do Sinai. Um último itinerário, mais frequentado pelos transportadores, ia diretamente do Eufrates aos portos fenícios (Tiro, Sídon, Bíblos), de onde estava assegurado a ligação por mar com o Egito. Por essas grandes vias de comunicação, circulavam as mercadorias, os exércitos e também as ideias.
O Crescente Fértil não era um mundo fechado. Comunicava-se diretamente com a Arábia, com a África através do Egito e da Etiópia, com a Índia através do Irã, e também com o Ocidente: Chipre, Creta, Ilhas Gregas, Jônica, mais tarde Grécia continental e Itália. Sempre houve intercâmbio comerciais entre o Crescente Fértil e a bacia mediterrânea, o que deu aos países do Mediterrâneo e do Oriente Próximo certa unidade cultural.
2. Estrutura da Palestina. Neste conjunto, a Palestina ocupa uma posição bastante marginal, embora se encontre inserida num importante corredor. Com efeito, o coração do país se encontra bem próximo dos grandes eixos de comunicação , mas a região está tão compartimentada que seus habitantes se veem constrangidos a um certo isolamento.
De modo bastante sumário, podem-se distinguir quatro faixas orientadas no sentido norte-sul:
a) uma faixa costeira: o litoral mediterrâneo, estreito e pouco favorável ao estabelecimento de portos, prolonga-se numa cadeia de colinas (chamada Shefelá – Baixada – no sul), cortada por pequenas planícies;
b) uma cadeia central: bastante elevada ao sul, na Judeia (mais de 1.000 m), abaixa-se à medida que se vai para o norte, mas acaba por levantar-se na extremidade setentrional do país, antes de se prolongar no maciço do Líbano. Depressões transversais delimitam nitidamente três regiões: Judeia, Samaria, Galileia. A mais importante dessas depressões é a planície de Jezreel, ou Esdrelon. Limitada a oeste pelo monte Carmelo;
c) uma grande depressão ocupada pelo vale do Jordão, o lago da Galileia e o mar Morto; prolonga-se ao sul pelo vale da Arabá, que termina no Golfo de Ácaba. Esta depressão, que prolonga as falhas geológicas dos grandes lagos africanos, é o fosso continental mais profundo de toda a terra: o mar Morto está 390m abaixo do nível do Mediterrâneo;
d) o planalto trans-jordaniano, cuja margem ocidental sobreolha a depressão central. Sua parte sul é recortada pelas gargantas dos afluentes de Jordão e do mar Morto (Arnon, Jaboc). A parte norte, menos abrupta, forma uma cadeia mais elevada do que a cadeia central, o Hermon e o Antilíbano são seus prolongamentos.
3. Condições de vida na Palestina. Apesar de variar com as regiões, o clima da Palestina apresenta alguns traços comuns: bastante ensolarado, chuvas distribuídas em poucos dias, estação seca de maio a outubro, grande irregularidade da quantidade de chuva (que pode diminuir ou duplicar de um ano para outro).
O índice pluviométrico decresce rapidamente de oeste para leste e de norte a sul. Desse modo, podem-se distinguir três regiões climáticas:
entre a costa e as colinas centrais, uma região razoavelmente irrigada por chuvas, que permite as culturas mediterrâneas: trigo, cevada, vinho, oliveira, frutas e legumes;
na vertente leste do maciço da Judeia e no Négueb, uma região semidesértica apta para algumas culturas periódicas e criação de ovelhas;
uma região desértica, uma estepe , que fornece algumas pastagens periódicas.
Nas duas últimas regiões, encontram-se alguns oásis férteis, mas de superfície bastante reduzida.
Se, em comparação com as regiões semiáridas, as regiões irrigadas podiam passar por “terra boa”, uma “terra que mana leite e mel”, a vida nelas era sempre precária e a terra não podia alimentar uma população numerosa, que não parece ter ultrapassado um milhão de pessoas nos tempos bíblicos. As duas maiores cidades, Jerusalém e Samaria, não chegaram a contar mais de 30.000 habitantes. As outras cidades eram simples cidades fortificadas. O resto da população habitava povoados agrupados ao redor das nascentes.
B) ISRAEL NO MEIO DAS NAÇÕES
1. As grandes etapas da história de Israel
a) As origens de Israel, como as da maioria dos povos, são muito difíceis de estabelecer. A entrada de Israel história, por volta de 1200 a.C., foi precedida por um longo período de formação (8 ou 9 séculos), que escapa em grande parte aos historiadores. No entanto, Israel guardou desse período lembranças de acontecimentos e de personagens marcantes, lembranças que se conservaram na tradição oral, narrativas que se transmitiam de uma geração a outra. Esses relatos podem conservar muitas informações úteis ao historiador. Confrontando essas tradições com o que sabemos da história do Oriente Primitivo e com os documentos fornecidos pela arqueologia, pode-se chegar a certo conhecimento desse período decisivo.
Os antepassados dos israelitas devem ser procurados entre os semitas seminômades, criadores de ovelhas, que circularam durante todo o segundo milênio pelas margens semidesérticas do Crescente Fértil. Pouco a pouco, esses grupos acabaram por se fixar; por vezes chegaram até a dominar uma região já ocupada por outras populações. Entre as seminômades, dois grupos são mais conhecidos: os amorreus (emoritas), que se fixam na Mesopotâmia, na Síria e na Palestina por volta de 2000 a.C., e os arameus, que se fixam na Síria no século XIII a.C. Mas os documentos egípcios e mesopotâmicos assinalam muitos outros grupos que se infiltravam continuamente na Mesopotâmia, na Palestina e no Egito.
Desse período pouco conhecido, a tradição bíblica faz emergir algumas grande figuras. Abraão, Isaac, Jacó-Israel e os ancestrais das tribos israelitas. É difícil avaliar o valor histórico dos dados sobre os patriarcas fornecidos pela tradição. Confrontando-se com os dados da história e de arqueologia, pode-se presumir que os patriarcas se fixaram na Palestina no século XIX ou XVI a.C. - segundo outras estimativas entre os séculos XVIII e XVI a.C. - e que vinham da Mesopotâmia (Abraão vinha de Ur na Siméria, Jacó de Harran no Médio-Eufrates). Os autores bíblicos se preocupam muito menos em situá-los na história de seu tempo do que em mostrar como eles se tornaram os pais espirituais do povo de Deus: adoradores e confidentes do único verdadeiro Deus, receberam dele ricas promessas para sua posteridade (Gn 15; 17).
Uma parte de seus descendentes se estabeleceu no Egito, em companhia de outros grupos semíticos. É impossível fixar uma data para a implantação, que se processou lentamente, no decorrer de quatro ou cinco séculos. Há, pelo menos, dois períodos que podem ter tornado esta instalação mais fácil:
A denominação dos hicsos, vindos da Palestina e que governaram o Egito de 1700 a 1550 aproximadamente;
O enfraquecimento do poder egípcio, que marcou o reino do faraó Akhenaton (1364-1347).
b) O nascimento do povo foi um processo complexo, que começou provavelmente em 1250, sob o faraó Ramsés II. Grupos semitas estabelecidos no Egito, submetidos a duras corvéias, conseguiram fugir sob a direção de Moisés, que os reagrupou ao redor do Sinai, depois no oásis de Qadesh (Cades), ensinando-os a servir ao Senhor, a quem devem a libertação, e dando-lhes um início de organização.
A Bíblia dá grande destaque a esses acontecimentos fundamentais, que apresenta como ato de nascimento de Israel, o ponto de partida de sua história. Três fatos são especialmente destacados: a partida do Egito depois de uma série de catástrofes, sinais da intervenção do Senhor (Êx 7-12), a passagem do mar (Êx 14-15) e o encontro entre Israel e seu Deus no Sinai ou no Horeb Êx 19-24).
As tribos que escaparam do Egito penetram em seguida na Palestina. Umas pelo sul, outras pelo leste. Trata-se em geral de movimentos dispersos, de infiltrações pacíficas em regiões pouco habitadas. Mas em vários lugares, os recém-chegados devem guerrear contra as cidades cananeias, que tentam detê-las. As vitórias israelitas são compreendidas como novas provas da intervenção do Senhor, que dá a seu povo a “boa terra” prometida a seus antepassados. Entre os chefes de tribos que se destacaram nas batalhas, a Bíblia conservou sobretudo Josué, chefe de Efraim, que parece ter desempenhado um papel importante no reagrupamento das tribos, tanto das que vinham do Egito como das que já estavam instaladas na Transjordânia e na Galileia. Israel é, de agora em diante, um povo constituído, embora sua estrutura política ainda seja muito maleável.
A “federação” das tribos pouco a pouco toma consistência no decorrer dos séculos XII e XI a.C., porque devia resistir a diversas ameaças: assaltantes nômades, reinos da Transjordânia, cidades cananeias. O perigo principal vinha dos filisteus, desembarcados nas costas da Palestina no início do século XII a.C., que se apresentavam como os concorrentes mais sérios de Israel na posse da Palestina. Durante muito tempo, as tribos se contentam com alianças defensivas, limitadas e temporárias, sob a conduta de chefes inspirados aos quais se dava o título de “Juízes”. Mas tendo a ofensiva filisteia se tornado mais ameaçadora, as tribos decidem reforçar a coesão pondo à sua frente um rei, conforme o modelo dos povos vizinhos.
c) A monarquia. Após o fracasso do reinado de Saul, o judeu David é reconhecido como rei por todas as tribos, pouco antes do ano 1000 a.C. (2Sm 5). David repele os filisteus para a costa e empreende uma série de guerras ofensivas contra os arameus; chegará a impor sua dominação a todos os estados vizinhos até o norte da Síria. Ao mesmo tempo, começa a organizar o Estado. Instala a capital em Jerusalém e para lá transfere a arca da aliança, centro do culto comum às tribos.
É a seu filho Salomão que compete concluir a organização do reino com a criação de um aparelho administrativo e de um exército permanente bem-equipado. Salomão desenvolve o tráfego comercial, que propicia ao país um rápido enriquecimento e enseja ao jovem reino um lugar invejável em meio às nações. Ele multiplica as construções em Jerusalém e em todo o reino. Sua obra mais importante é a construção do templo de Jerusalém (1Rs 6-8), centro de reunião das tribos, no qual Israel vê o sinal da presença permanente do Eterno no meio de seu povo, a prova de que o povo de Deus está constituído e estabelecido em solo próprio. O fim do reinado de Salomão foi, contudo, marcado por séries reveses (1Rs 11).
O filho de salomão, Roboão, não era capaz de governar o estado, apenas aparentemente unificado. Revoltadas por um despotismo oneroso, as tribos do centro e do norte provocam a secessão, em 933 a.C., e se constituem em estado independente, o reino de Israel. Isoladas no sul, as tribos de Judá e de Benjamin continuam fiéis ao descendente de David no reino de Judá. Durante dois séculos, o povo de Israel estará dividido em dois estados mais ou menos rivais.
Constituído pelas regiões mais ricas e mais povoadas do pais, o reino do Norte conheceu períodos brilhantes, especialmente sob Omri (886-875), o fundador de Samaria, sob Acab, sob Jeroboão II. Mas, minado por uma instabilidade dinástica crônica, não teve meios para se opor à expansão assíria. Foi varrido pela ofensiva de Tiglat-Piléser em 738 a.C.; a última resistência foi quebrada em 722-721 a.C., entre a tomada de Samaria. Parte da população foi deportada, e o território do reino tornou-se província assíria.
O reino do Sul, pobre, cercado por vizinhos hostis, não podia desempenhar um papel importante e parece ter sido bastante influenciado pela política egípcia. Logrou, no entanto, conservar seu lugar no meio das nações sob reis como Asá, Josafat, Ezequias, que teve de recolher o que restou do reino do norte, e Josias, a quem Judá deve seu último surto de independência. Mas após um prazo de pouco mais de um século, foi a vez de o pequeno reino ruir: os babilônios de Nabucodonosor arrasam Jerusalém e deportam parte de seus habitantes (587 a.C.).
Dispersos por toda a Mesopotâmia ou refugiados no Egito, os israelitas muitas vezes se assimilaram aos povos que os acolheram. Mas alguns grupos de origem judaísta souberam manter a coesão e preservaram uma vida religiosa própria: a organização que deram a suas comunidades foi a origem das sinagogas. Para esses grupos, o exílio foi a ocasião de refletir profundamente sobre a vida de seu povo e de fazer o balanço da História de Israel, vários livros da Bíblia são fruto dessa meditação.
Mas os profetas não esperaram o fim do reino de Judá para expressar um juízo de valor sobre os fatos que estavam ocorrendo. Ensinaram o povo de Deus a ver a obra do Senhor em todos os acontecimentos, tanto os mais gloriosos como os mais trágicos. Nas catástrofes que, a partir do século VIII a.C., se abateram sobre os dois reinos, reconheceram as consequências das infidelidades cometidas pelo povo contra Deus: culto aos deuses estrangeiros e injustiça social. Mas deixaram entrever igualmente o retorno do povo infiel à graça e delinearam perspectivas de esperança.
d) A comunidade judaica. Com efeito, menos de 50 anos após a queda do reino de Judá, a situação se inverte: o império babilônico desmorona sob os golpes dos persas. Um decreto de Ciro, em 538 a.C., autoriza a reconstrução do Templo de Jerusalém, ao redor do qual se reagrupam os judeus que retornaram do exílio. É apenas uma pequena comunidade, que cresce lentamente em meio a numerosas dificuldades. Ela deve enfrentar especialmente a hostilidade dos que ficaram na região e ocuparam a terra. Neemias e Esdras, no século V a.C., dão-lhe uma organização definitiva. Sem influência no domínio político, ela deixou profundas marcas no âmbito religioso. Foi no decorrer desse período que a maior parte dos livros do Antigo Testamento recebeu a foma final.
Em 333 a.C., Alexandre Magno pôs fim à dominação persa e assegurou, no terreno político, a vitória do helenismo. Incorporada ao Império Macedônico, a terra de Israel terá de sofrer muitas vezes por causa das lutas entre os sucessores de Alexandre. Durante um século e meio, a comunidade judaica viverá em paz geral com o mundo grego. Mas em 167 a.C., o conflito explode: Antíoco IV quer abolir o estatuto particular de Jerusalém e lança o interdito sobre as práticas judaicas na Palestina. Os irmãos macabeus desencadeiam uma insurreição armada, que acaba por ser vitoriosa. Simão Macabeu, reconhecido como sumo sacerdote, obtém a independência para a Judeia (141 a.C.). Durante quase um século, seus descendentes, os hasmoneus, que se tinham arrogado o título de reis, mantiveram a situação, à qual os romanos puseram fim em 63 a.C., quando Pompeu se apoderou de Jerusalém e fez da Judeia uma província romana (cf. Introdução ao Novo Testamento).
No decorrer desse período, a comunidade judaica se separa progressivamente dos samaritanos que, vivendo em redor do santuário de Siquém, herdaram das tribos do centro algumas tradições opostas às de Jerusalém.
As invasões assírias, no século VIII a.C., dispersaram bom número de israelitas na Mesopotâmia, no Egito e em outros países. Muitos não retornaram à Judeia, depois de 538 a.C. A unificação de numerosos povos sob a dominação grega favoreceu um movimento de emigração através de todo o Oriente Próximo e em torno da bacia do Mediterrâneo, especialmente no Egito. Desde o século II a.C., Alexandria conta mais judeus do que a Judeia. Ao mesmo tempo, desenvolve-se um intenso esforço de propaganda, que levará ao judaísmo muitos convertidos, os “prosélitos”. Todos esses judeus residentes no estrangeiro constituem a diáspora (dispersão), muito mais numerosa do que a população da Palestina, metade da qual, aliás, não era judaica. Agrupados ao redor de sinagogas e, apesar da distância, muito apegados a Jerusalém e ao Templo, esses judeus partilham ao mesmo tempo a vida dos povos em meio aos quais residem. Eles contribuíram para dar ao judaísmo um semblante novo e o prepararam para superar a grande provação que foi, em 70 d.C., a guerra contra os romanos, que terminou com a ruína do Templo e, após uma derradeira resistência com Bar-kokbá (em 135), com a supressão da nação judaica.
2. As nações em torno de Israel. No decorrer dos séculos, o Crescente Fértil foi o lugar de migração de numerosos povos de proveniência, cultura e religião diversas. Israel esteve em contato mais ou menos estreito com muitos dentre eles.
a) Vizinhos imediatos. Eram pequenos estados, cujos habitantes tinham mais ou menos a mesma origem que os israelitas.
No sudeste, os edomitas ocupavam o maciço de Seir, o vale da Arabá e a região de Petra. Mais ao norte, encontrava-se o reino de Moab (a leste do mar Morto), depois o reino de Amon (cf. A atual Amã). Na fronteira norte, Israel encontrava os reinos arameus (Damasco, Hamar). Apesar de os conflitos com esses países terem sido crônicos, Israel considerava que seus povos tinham com ele um parentesco, expresso nas genealogias: Amon e Moab eram os sobrinhos-netos de Abraão, Edom (Esaú) era o irmão de Jacó, o arameu Labão era tio e sogro de Jacó.
No noroeste se encontravam os fenícios, marinheiros e comerciantes que, durante toda a Antiguidade, sulcaram os mares, estabelecendo feitorias e colônias às margens do Mediterrâneo. Biblos, Sidom e Tiro foram periodicamente as capitais deste pequeno reino, derradeiro resto dos estados cananeus vencidos pelos israelitas e os filisteus. Com população muito mesclada, Canaã tinha, no entanto, certa unidade cultural e religiosa, contrastando com o esfacelamento político da região. Falava-se aí uma única língua, o cananeu, cuja forma antiga só se pode perceber graças a algumas glosas de tabuletas babilônias de Tell el-Amarna. A civilização e a religião de Canaã não são conhecidas pelo testemunho direto dos textos. Mas se admite que elas se assemelhavam, no essencial, com as que revelaram os documentos de Ras Shamra, na Síria do Norte, redigidas no século XVI a.C., numa língua chamada ugarítica.
No sudeste, enfim, residiam os filisteus, chegados à costa pouco depois da época da instalação das tribos de Israel. Sua religião e costumes diferiam nitidamente das religiões e costumes dos povos do Crescente Fértil, enquanto se assemelhavam aos de Creta e da Grécia. Para Israel, eram os estrangeiros por excelência.
b) Grandes potências. Israel tinha problemas não só com esses pequenos estados, mas também com as grandes potências que periodicamente dominavam o Oriente Próximo. Em raros períodos, a fraqueza dessas potências permitia à Palestina dispor de si mesma; David aproveitou-se de uma situação dessas para fundar seu reino. Mas, na maior parte do tempo, a Síria e a Palestina estavam submetidas à pressão de seus grandes vizinhos.
Primeiramente o Egito, que, por volta de 3000 a.C., já era um grande estado, com civilização bastante evoluída. Estendido ao longo do Nilo, estava voltado para a África (a Núbia, ou Etiópia), mas mais ainda para a Europa e a Ásia. Todo o tempo, os faraós procuraram dominar a Palestina que, durante longos séculos, foi província egípcia ou protetorado: quase todos os reis de Judá foram aliados ou satélites do Egito. Isso explica uma influência cultural prolongada que deixou na Bíblia traços importantes (em particular aos livros sapienciais).
Depois, a Mesopotâmia: Ela foi sempre um mundo complexo: todas as raças se entrecruzavam aí, os impérios se sucediam combatendo-se. O primeiro império mesopotâmico a dominar a Palestina foi o reino assírio, que começou sua expansão para o oeste no século IX a.C. Assolou o reino de Israel entre 735 e 721 a.C., enquanto o reino de Judá devia prestar-lhe vassalagem. A potência assíria, definitivamente vencida em 608 a.C., deu lugar a um reino babilônico governado pelos caldeus (arameus orientais). Nabucodonosor impôs sua dominação a quase todo o antigo império assírio e esmagou definitivamente o reino de Judá em 587 a.C. Em 539 a.C., o rei da Pérsia, Ciro, pôs fim a esse império, cujas província incorporou a um império muito mais vasto, que se manterá por mais de dois séculos. O governo persa se mostrará tolerante para com as culturas e as religiões das etnias que dominava. Neste quadro, a comunidade judaica pôde se reconstituir e prosperar.
Mas, muito antes de confrontar-se com as potências políticas da Mesopotâmia, a Palestina já tinha relações prolongadas com esse foco de civilização. Desde 3000 a.C., pelo menos, a Baixa Mesopotâmia fazia sentir sua influência em toda a extensão do Crescente Fértil. Dominada sucessivamente pelos sumérios (Ur, Lagash), os acádios (Acad), os amorreus (Babilônia, Mári), os hurritas (Nuzi), os assírios (Nínive), os caldeus, os persas e outros ainda, a Mesopotâmia teve uma tradição constante e bastante homogênea. A criação do império persa acrescentou a essa influência a contribuição dos povos indo-europeus do Irã.
Vem, por fim, o mundo grego. Desde o ano 2000 a.C., Canaã sofria a influência da civilização egéia, influência que cresceu ainda mais a partir da época da dominação persa. Ela se torna particularmente forte no século IV a.C.: em alguns anos, o macedônio Alexandre construíra um império que ia do Adriático ao Indo. Com sua morte, em 323 a.C., o império foi dividido entre seus generais. A Palestina pertenceu primeiramente ao estado dos ptolomeus, que dominava o Egito (Alexandria), depois ao estado dos selêucidas (Antioquia), que recobria a Síria e a Mesopotâmia. Embora pertencessem à mesma civilização, chamada helenística, esses dois estados estavam em perpétuo conflito, e a Palestina mudou várias vezes de senhorio. Mas não foi apenas porque os gregos ocupavam o território que Israel se deparou com essa cultura: uma população numerosa helenizada se tinha instalado na Palestina no curso do século III a.C. No entanto, nessa época, o judaísmo, havia muito tempo, afirmara sua personalidade, e a influência grega só o tocou talvez bastante superficialmente. E não sem lutas Obs.: “Para efeito de história – registro – sito os apócrifos (1 e 2Mc), somente”. A influência helenística atingiu mais os judeus da diáspora, embora neles também as referências fundamentais fossem sempre as da cultura e da religião de Israel.
C) O CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO
O Antigo Testamento não é a totalidade da literatura produzida pelo povo hebreu. É o resultado de uma seleção de livros aos quais se reconhece autoridade e que são, por isso, chamados canônicos (a palavra Kanôn em grego significa “Regra”).
Sobre a formação do cânon do Antigo Testamento, remetemos o leitor à introdução aos livros deuterocanônicos. (OBS.: “sendo o meu entender, somente para estudo histórico. Sendo que nesse sentido, entra os livros apócrifos – NÃO INSPIRADOS POR DEUS!”).
D) O TEXTO DO ANTIGO TESTAMENTO E SUA TRANSMISSÃO
I – A língua do Antigo Testamento
Os livros do Antigo Testamento foram escritos essencialmente em hebraico. Essa língua semítica – apresentada, portanto, com o árabe e o babilônico – é bastante diferente das línguas europeias. Para compreender certas notas, talvez seja útil conhecer algumas de suas características, que são as mesmas para o aramaico, língua de alguns textos do Antigo Testamento.
- A maior parte das palavras (verbos e substantivos, por exemplo) é formada a partir de “raízes” caracterizadas por consoantes (habitualmente três, o único elemento a ser escrito, ao menos no princípio). As vogais (variáveis) e um certo número de prefixos e sufixos servem para indicar as funções gramaticais: gênero e número dos nomes, modos dos verbos etc. Assim, a raiz brk, que exprime a ideia de benção, pode tomar formas tais como: barek = abençoar, berak = ele abençoou, beraku = eles abençoaram, yebarek = ele abençoará, baruk = abençoado, beruká = abençoada, beraká = bênção.
Como o contexto é que determina o sentido das palavras, geralmente é fácil constatar na leitura quais vogais devem figurar em cada palavra: por isso, essa escrita abreviada (sem vogais) foi suficiente para o hebraico durante o tempo em que permaneceu uma língua viva. Quando deixou de ser falada pelo povo, foram criados diversos sistemas para a notação das vogais.
Nos verbos, o hebraico exprime sobretudo o aspecto da ação: as noções temporais de passado, presente, futuro nas quais se desenrola a ação são indicadas pelo contexto. A forma verbal descreve a ação como realizada ou não-realizada. A ação realizada corresponde geralmente ao passado (perfeito ou mais-que-perfeito), mas pode também ter valor para o futuro, se se olhar a ação em sua totalidade como uma realidade acabada. A ação não-realizada vale sobretudo para o futuro, mas também para o presente e o passado, quando a ação continua ou se repete (imperfeito). De fato, só o contexto permite saber se ação está no passado ou no futuro, mais o próprio sentido do contexto nem sempre é evidente, o que explica numerosas divergências entre as diversa traduções da BÍBLIA.
Como toda língua, o hebraico possui certo número de expressões idiomáticas: para falar do santo Templo de Deus, o hebraico diz “o Templo de sua santidade”; para descrever alguém que empreende uma viagem, o hebraico diz: “levantou-se e foi”; para apresentar-se diante de Deus o hebraico diz: “vir ante a face de Deus”.
As primeiras traduções gregas da Bíblia transpuseram numerosas expressões desse gênero, bem como outros hebraísmo. Desse modo criaram uma língua particular: o grego bíblico, utilizado no Antigo Tesamento grego e ao Novo Testamento. A escritura é quase a mesma do grego que se falava em toda a bacia do Mediterrâneo entre o século II a.C., e o século I de nossa era; mas muitas palavras tomaram um sentido especial, e esse idioma utiliza figuras próprias ao hebraico ou aramaico.
II – A TRANSMISSÃO DO TEXTO
1. Os livros transmitidos em hebraico (ou em aramaico)
a) O texto massorético. Os livros que o povo judeu, no fim do século I d.C., considerou como livros santos (Bíblia judaica, Antigo Testamento dos protestantes, livros protocanônicos do Antigo Testamento para a Igreja católica) foram conservados em sua língua original (aramaico para uma grande parte de Daniel e algumas passagens de Esdras, hebraico para todo o resto).
Chama-se texto massorético a forma textual oficial definitivamente fixada no judaísmo por volta do século X d.C., época na qual floresciam em Tiberíades, na família dos bem Asher, os mais celebres massoretas (= transmissores e fixadores da tradição textual). O mais antigo manuscrito “massorético” que possuímos foi copiado entre 820-850 d.C., e contém apenas o Pentateuco. O mais antigo manuscrito completo, o códice de Alepo – hoje, infelizmente amputado -, foi copiado nos primeiros anos do século X d.C. Nossas Bíblias hebraicas modernas reproduzem esse texto tal como foi copiado no manuscrito B 19a (L), de Leningrado (c. 1800).
O fato de a escrita hebraica anotar de modo preciso apenas as consoantes tornou ambíguos certos textos bíblico. Por volta do século VII d.C., encontrou-se um meio preciso para anotar as vogais e para indicar a vocalização tradicional das frases e membros de frases, graças a um sistema complexo de pontos e de traços que acompanham o texto consonântico. Assim se fixou por escrito uma tradição de leitura e de exegese desenvolvida no judaísmo no curso da primeiro milênio de nossa era e da qual os targumin (traduções aramaicas da Bíblia hebraica) são as testemunhas fiéis. Resquícios de algumas traduções gregas realizadas sob a influência do rabinato no curso dos dois primeiros séculos (as de Teodocião, de Áquila e de Símaco) permite remontar ainda mais longe na história desta tradição de exegese.
b) O texto protomassorético e as formas textuais não-massoréticas. O texto consonântico que serviu de base para a atividade das massoretas (= texto protomassorético) já suplantado no judaísmo todas as outras formas textuais rivais pelo fim do século I d.C.
A partir de 1947, foram descobertas, às margens do mar Morto, em grutas ao redor da ruína de khirbet Qumran, alguns rolos de livros bíblicos quase completos e de milhares de fragmentos abandonados no século I de nossa era. Isso permitiu constatar que, na época de Jesus, circulavam na Palestina certo número de livros bíblicos em formas textuais por vezes divergentes do texto protomassorético. Conheciam-se já, antes da descoberta dos manuscritos de Qumran e do Deserto de Judá, algumas formas não-massoréticas do texto do Antigo Testamento: por exemplo, aquele que a comunidade dos samaritanos conservou para o Pentateuco, ou então o que serviu de base para a antiga tradução grega dos Setenta (Septuaginta). Estas duas últimas formas textuais, apesar de conservadas em manuscritos mais recentes que os manuscritos do Deserto de Judá, remontam aos três últimos séculos antes de Cristo.
Em todas essas formas do texto pré-massorético podemos encontrar por vezes um texto mais claro e inteligível do que o massorético. Daí a tentação de muitos exegetas, sobretudo entre 1850 e 1950, de a elas apelar para corrigir o texto massorético nos trechos considerados alterados. c) Alterações textuais. É certo que determinado número de alterações diferenciam o texto proto-massorético do texto original.
Por exemplo, o olho do copista saltou de uma palavra a outra semelhante, situada algumas linhas abaixo, omitindo tudo aquilo que as separava.
Do mesmo modo, certas letras, sobretudo quando mal-escritas, muitas vezes foram mal-lidas e mal-reproduzidas, pelo copista seguinte.
Ou então um escriba inseriu ao texto que ele copiava, e às vezes num lugar inadequado, uma ou várias palavras que encontrara à margem: termos esquecidos, variantes, glosas explicativas, anotações etc.
Ou ainda alguns escribas piedosos pretenderam melhorar por meio de correção teológicas uma ou outra expressão que lhes parecesse suscetível de interpretação doutrinalmente perigosa.
Algumas dessas alterações podem ser detectadas e corrigidas graças às formas textuais não-massoréticas, quando estas se verificam isentas de alterações.
d) Crítica textual. Que forma de texto escolher? Noutras palavras, como chegar a um texto hebraico o mais próximo possível do original? Alguns críticos não hesitam em “corrigir” o texto massorético cada vez que ele não lhes agrada, seja por motivo literário, seja por motivo teológico. Por reação, outros se atém ao texto massorético, mas quando ele é manifestamente insustentável, procuram encontrar numa ou noutra das versões antigas uma variante que lhes pareça preferível. Esses métodos não são científicos, sobretudo o primeiro. São perigosamente subjetivos.
Atualmente, um melhor conhecimento da exegese targúmica e das literaturas antigas do Oriente Próximo permite explicar certas passagens até hoje obscuras.
Mas a solução verdadeiramente científica consistiria em fazer com a Bíblia hebraica o que se faz com o Novo Testamento e com todas as obras da Antiguidade: um estudo bastante minucioso do conjunto das variantes, estabelecendo “a árvore genealógica” dos testemunhos que possuímos – texto massorético, múltiplos textos de Qumran, Pentateuco samaritano, versões gregas da Septuaginta (com suas três revisões sucessivas), da Quinta (de Orígenes), de Áquila, de Símaco, de Teodocião, versões aramaicas dos targumin, versões siríacas peshitto, filoxeniana, siro-hexaplar, versões latinas antigas e Vulgata de Jerônimo, versões coptas, armênias etc. - e assim, sem nenhuma conjetura subjetiva, restabelecer o arquétipo à base de todas as testemunhas. Geralmente esse arquétipo remonta ao século IV a.C. Em alguns casos privilegiados (certas passagens das Crônicas), pode-se provar que o arquétipo assim obtido é o próprio original. Quase sempre o arquétipo está separado do original por um período mais ou menos longo, e então se está obrigado, para passar do arquétipo ao original, a recorrer a algumas conjeturas, com a aplicação prudente de princípios críticos bem estabelecidos.
Infelizmente, os textos de Qumran ainda não estão todos publicados, e o trabalho crítico exige tanta competência e pesquisa que ele levará ainda várias décadas.
2. Os livros transmitidos em grego. Fiel nesse ponto mais a Orígenes do que a Jerônimo, a presente tradução não quis manter o apego à tradição rabínica a ponto de eliminar os livros que, desde a fundação, as Igrejas herdaram do judaísmo de língua grega (classificados como deuterocanônicos na tradição “católica”). Pelo fato de os judeus de língua hebraica não os terem conservado na lista oficial de seus livros santos e de o judaísmo ter cessado de assegurar-lhes a tradição textual no curso do século I de nossa era, eles nos oferecem tradições textuais geralmente menos unificadas que, por vezes, perderam o enraizamento semítico de onde a maior parte deles surgira. As introduções a cada um deles justificam as escolhas textuais realizadas pelos colaboradores desta tradução. LIVROS APÓCRIFOS!
E) O SENTIDO DO ANTIGO TESTAMENTO
1. Para os judeus. Para ler a Bíblia (= “Lei escrita “), o judaísmo elaborou sua própria tradição interpretativa durante o período rabínico clássico, do século II a.C. Ao século VIII da nossa era. Primeiramente “Lei oral” ou “tradição dos antigos” (porque transmitida de mestre a discípulo sem a mediação escrita), essa tradição foi codificada e posta por escrito na Mishná (que, com o seu comentário, a Guemará, forma o Talmud) e nas diversas coletâneas midráshicas. Ela se desenvolve essencialmente sobre dois pontos: a interpretação livre e homilética, visando alimentar a reflexão religiosa (Hagadá) e a definição das regras de conduta cotidiana (Halaká). “Lei escrita” e “Lei oral”, texto de referência e interpretação ininterrupta, constituem a tradição religiosa viva do judaísmo.
Deixemos a palavra a dois autores judeus contemporâneos:
“Se existe uma coisa no mundo que mereça o atributo de divino, é a Bíblia. Há inúmeros livros sobre Deus. A Bíblia é o livro de Deus. Revelando o amor de Deus pelo homem, ela nos abriu os olhos, a fim de que pudéssemos ver que aquilo que tem um sentido para a humanidade é, ao mesmo tempo, o que é sagrado para Deus. Ela mostra como a vida de um indivíduo pode se tornar sagrada, e sobretudo, a vida de uma nação. Oferece sempre uma promessa às almas honestas quando perdem o ânimo, enquanto os que a abandonam vão de encontro ao desastre” (A. Heschel, Dieu em quête de I' homme, Paris, Seuil, 1968, p. 263 [port: Deus em busca do homem, São Paulo, Paulinas, 1975]).
“A teologia judaica, ligando o universalismo da criação ao particularismo de Israel, confirma aquilo que toda a Bíblia ensina, a saber, que Deus se revela ao homem e que Israel está no centro da humanidade, criada à imagem espiritual de Deus: “Vós sereis para mim um povo de eleição entre todos os povos, um reino de sacerdotes, uma nação santa” (Êx 19,5-6); “Santos vos tornareis, pois Eu sou Santo, Eu, o ETERNO, vosso Deus” (Lv 19,2). {está, é uma das passagens mais bela que, no meu entender, acho mais linda e importante – Anselmo Estevan.}”.
“Compreende-se então que o judaísmo conceda a Bíblia o lugar mais eminente no ensinamento sinagogal, visto que ela é o “Livro da Aliança” que une Deus a seu povo (Êx 24,7), a carta que, em Abraão, tornou todo Israel bênção para todas as nações (Gn 12,3), de sorte que “a terra inteira reconheça um dia e proclame a Realeza e a Unidade de Deus” (Zc 14,9)” (A. Zaoui, Catholiques, juifs, orthodoxes à la Bíble, t. I, Paris, cerf, 1970, p. 76).
2. Para os cristãos. O Antigo Testamento só é antigo em relação ao Novo, isto é, a nova aliança instaurada por Jesus Cristo. Mas não se deve exagerar a diferença entre ambos, como se a antiga aliança e a literatura que dela dá testemunho tivessem caducado. Essa visão das coisas, que foi a de Marcião no século II, reaparece periodicamente na história da teologia. Ora, ela atinge mortalmente o próprio Novo Testamento.
a) O Antigo Testamento foi a única Bíblia de Jesus e da Igreja primitiva. Como livro da educação judaica, de algum modo, moldou a alma de Jesus. Este assumiu os valores do AT como fundamentos do seu evangelho: não veio para “ab-rogar” a Lei e os profetas, mas “para cumpri-los”. Cumpri-los era primeiramente levá-los a um ponto de perfeição no qual o sentido primitivo dos textos se superasse a si mesmo, para traduzir em sua plenitude o mistério do Reino de Deus. Cumpri-los era também fazer entrar na experiência humana o conteúdo real da promessa que polarizavam a esperança de Israel. Era desvendar o sentido definitivo de uma história ligada a uma educação espiritual, mostrando sua relação com o mistério da salvação, consumado pela cruz e ressurreição de Jesus. Era enfim dar à oração que aí se expressava uma riqueza de conteúdo que ultrapassasse os seus limites provisórios. Sob todos estes aspectos, Jesus cumpriu em sua pessoa as Escrituras que estruturavam a fé de Israel.
b) Por isso a Igreja apostólica encontrou nas Escrituras o ponto de partida necessário para anunciar Jesus Cristo. À luz da Pascoa, ela não somente rememorou os feitos e gestos de Jesus, a fim de compreender o seu sentido profundo; também releu todos os textos antigos que lhe recordavam a história preparatória, com suas peripécias contrastantes, suas instituições provisórias, seus sucessos e fracassos, seus pecadores e santos. Não se encontravam esboçados, anunciados e prefigurados já no Primeiro Testamento a mensagem de Jesus, sua missão redentora, a constituição e o mandato da Igreja? Por isso os livros do Novo Testamento, sem perder de vista as lições positivas contidas nos preceitos do Antigo, habitualmente reinterpretam os textos do AT para fazer emergir neles a presença antecipada do Evangelho. Dessa forma o Antigo Testamento pôde tornar-se a Bíblia Cristã, sem nada perder de sua consistência própria, antes adquirindo o estatuto de Escritura “consumada”.
c) Tal é a perspectiva na qual a primitiva teologia cristã foi construída, para explicitar o conteúdo do Evangelho e explicar que é Jesus, Messias judeu e Filho de Deus. As imagens de Adão e de Moisés, de David e do Servo sofredor, do Emanuel e do Filho do Homem vindo sobre as nuvens permitiram elaborar a linguagem fundamental da fé cristã. Certamente a linguagem do Novo Testamento apresenta diversidade notável. Mas, embora não despreze os recursos do universo cultural no qual viviam sem autores e leitores, foi tecido com as palavras e as frases da Escritura, as quais lhe conferem densidade. A relação entre Deus e seu povo, manifestação de sua graça e fidelidade , tomou assim sua verdadeira dimensão: tudo aconteceu a nossos pais “para servir de exemplo” e Deus quis que isso fosse consignado por escrito “para nos instruir, a nós a quem coube o fim do tempos” (1Co 10,11).
O Novo Testamento, que conseguinte, pôs as bases de uma leitura cristã do Antigo. Descoberta do Espírito sob o véu da letra. Revelação do sentido definitivo sob invólucros provisórios. Tal trabalho não se realizou, no decorrer dos séculos da história cristã, sem suscitar problemas complexos, que cada época formulou de modo novo. Herdeiros dessa tradição interpretativa, sempre orientada por uma visão de fé, vemos esses problemas se apresentarem a nós. Que pode haver de extraordinário nisso, uma vez que a Palavra de Deus veio até nós no meio de uma história verdadeiramente humana e sob a forma de palavras verdadeiramente humanas? Para além dessa história e desses textos, a Igreja se esforça por perceber a Palavra de Deus da qual é portadora, a fim de lhe responder na “obediência da fé”. Por isso é importante que a Escritura inteira se tenha transformando no tesouro comum das Igrejas, divididas por tantos dramas históricos. A obediência comum à única Palavra de Deus não é o indício mais seguro de uma unidade que se procura construir? É vivendo da mensagem bíblica, do modo como dela viveram os apóstolos, que os cristãos de hoje re-encontrarão o caminho da reunificação em Jesus Cristo.
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