quinta-feira, 1 de setembro de 2011
ESTUDO INTRODUÇÃO AO: PENTATEUCO.
O PENTATEUCO
INTRODUÇÃO
Unidade e diversidade do Pentateuco. Os primeiros livros da Bíblia formam o que se chama, na tradição cristão – grega, depois latina – o Pentateuco. É uma palavra grega que designava os “cinco estojos” que encerravam os volumes ou rolos, as cinco partes daquilo que se chama em hebraico a Torá, palavra habitualmente traduzida por “Lei”; por isso dizia-se também para designar esse livros “os cinco quintos da Lei”. Fala-se ainda dos “cinco livros de Moisés”, pois, conforme a tradição, Moisés é o legislador, o intermediário pelo qual o povo de Israel recebeu a Lei.
A Torá de Moisés é composta de várias coletâneas de leis, cada qual com sua estrutura literária, histórica e social, e enquadrando grandes ciclos de narrativas que evocam os atos de Deus na constituição do povo.
Os títulos dos cinco livros do Pentateuco vêm do grego. Procuram dar uma ideia esquemática do conteúdo: as origens, Gênesis; a saída do Egito, Êxodo. O nome do Levítico corresponde ao papel dos filhos de Levi na legislação cultural, e dos Números provém do recenseamento das tribos; o Deuteronômio (em grego, a “segunda lei”) é como uma retomada, uma repetição da lei. A tradição judaica se contenta com designar cada um dos cinco livros pela sua primeira palavra hebraica.
A divisão em cinco partes não quebra a unidade do conjunto, manifestada pela continuidade de um livro noutro. Dessa forma, o livro do Êxodo, inicia por uma breve recapitulação da genealogia de Jacó desenvolvida no cap. 46 do Gênesis e por uma retomada do último versículo do livro das origens. O Levítico prolonga a revelação da Lei a Moisés no Sinai, que principia em Êx 20 e não será concluído antes de Nm 10. Quanto ao Deuteronômio, é um discurso de Moisés, no qual ele renova o código de Êx 20-23, prevendo o tempo em que o povo, recém-instalado na Terra prometida, estará defronte ao risco de esquecer as exigências do seu Deus.
A atual divisão em capítulos, que data da Idade Média, pretende dar ao conjunto uma divisão mais ou menos regular para a comodidade da leitura e do estudo. As seções da leitura litúrgica judaica conheceram variações. Tampouco elas correspondem ao que se poderia considerar divisões naturais do texto, pois estas constituem seções de extensão muito variável. Por exemplo, a história de José ocupa vários de nossos capítulos (Gn 37 e 39-50); em compensação, o episódio da união dos anjos com as filhas dos homens ocupa apenas alguns versículos (Gn 6,1-4). Não se deve procurar no Pentateuco a composição rigorosa de um código moderno de leis ou de um tratado de teologia, e, apesar de seguir uma ordem cronológica, também não é um manual de história.
A lei e a história. Muitos textos narrativos do Pentateuco têm por finalidade valorizar uma lei: é assim que o episódio do bezerro de ouro (Êx 32,34) liga a ordem de partida do Sinai para a Terra prometida e a formulação da aliança com o preceito: “Não farás para ti deuses em forma de estátua” (Êx 34,17). Outros relatos justificam uma instituição: p. ex., a revolta de Qôrah, Datan e Abirâm (Nm 16,17) explica a escolha da família de Aarão para desempenhar as funções sacerdotais. Embora o Gênesis seja mais narrativa e o Levítico mais legislativo, é no Gênesis que se encontra a lei-instituição da circuncisão, não relatada alhures (Gn 17,9-14), e é no Levítico que se lê a narrativa da investidura sacerdotal de Aarão (Lv 8 e 9). A tradição judaica é mais sensível ao aspecto legislativo da Torá; a tradição cristã muitas vezes conservou mais os aspectos narrativos, a ponto de ver neles uma história da humanidade salva por Deus. A análise literária permite, em certa medida, distinguir diferentes “gêneros”, e o conhecimento dos documentos do Oriente Próximo antigo ajuda a caracterizá-los (código penal, legislação matrimonial, genealogia etc). Mas o trabalho de análise, por si só, não daria conta da perspectiva de conjunto, a imbricação de textos de gêneros tão diferentes é deliberada, significativa; não há leis e narrativas, mas uma lei que é, ao mesmo tempo, história e a lei do povo escolhido constituído por Deus.
Uma composição por etapas. Sem perder de vista a unidade de conjunto do Pentateuco, o leitor atento se surpreenderá com certos aspectos literários que traem uma composição complexa. Longe de empobrecer a leitura, essa atenção dispensada à diversidade de estilos e testemunhos contribui para desvelar os cinco livros como uma suma na qual se fixaram as confissões de fé de Israel, cada qual à sua maneira, no decorrer dos séculos.
Dessa forma, certos textos legislativos se repetem em contextos diferentes: O Decálogo é dado duas vezes (Êx 20; Dt 5); o ciclo das festas, quatro vezes (Êx 23; 34; Lv 23; Dt 16). O mesmo vale para as narrações: uma dupla narrativa da criação (Gn 1,1-2.4a; 2,4b-25), da expulsão de Hagar (Gn 16 e 21), da vocação de Moisés (Êx 3-4 e 6,2ss.) etc. Não se trata de simples repetições. Cada um dos textos paralelos possui uma marca original. O mandamento do shabbat, por exemplo, se funda tanto na evocação da criação (Êx 20,9-11), como na da saída do Egito (Dt 5,12-15); essas duas motivações para um mesmo mandamento possuem a mesma autoridade, mais decorrem de intenções diversas, que merecem ser resgatadas. O fenômeno é particularmente nítido na história do patriarca que faz a própria mulher passar por sua irmã aos olhos de um rei. Ela aparece três vezes. Em Gn 12 e 20, é aplicada a Abraão e Sara; em Gn 26, a Isaac e Rebeca. Também pode acontecer que uma narrativa desdobrada desse modo se apresente não só sob a forma de duas narrações distintas, mas como uma única narração na qual duas tradições se mesclam a narrativa do dilúvio (Gn 6,5-9.17). O caráter compósito desse texto é evidente, pois as diferenças de estilo saltam aos olhos. Bastaria perceber as diferenças nas indicações numéricas: dois animais de cada espécie (6.19) ou sete (7,2); quarenta dias de inundação (7,17) ou cento e cinquenta (7,24).
Diversidade literária aparece também no nível do estilo e das peculiaridades de vocabulário. A mais evidente é o emprego de diversos nomes divinos, particularmente óbvia nas narrativas paralelas. Uma das duas narrativas da expulsão de Hagar, por exemplo, fala do Senhor (YHWH, Gn 16,3-14), enquanto a outra emprega o nome comum para designar Deus (Elohim, Gn 21,9-19). A esse primeiro critério – que serviu de chave para que a análise literária identificasse a origem diversa das tradições – acrescentou-se outras divergências: a montanha da revelação ora é o Sinaí (Êx 19,1; Nm 10,12), ora o Horeb (como sempre em Dt, mas já citado em Êx 3,1; cf. Nota); os antigos abitantes da região são os cananeus (Gn 12,6) ou os emoritas (Dt 1,19, nota). Essas diferenças, entre muitas outras, sobretudo as que se combinam, evidenciam hábitos de linguagem próprias e certos grupos religiosos por meio dos quais os dados da tradição foram transmitidos. O estilo caloroso das exortações do Deuteronômio contrasta com o caráter técnico das prescrições rituais de Lv 1-7, assim como se choca com a forma lapidar dos mandamentos de Lv 19, onde o próprio Deus exige obediência, pois, é ele que diz: “Eu sou o Eterno, vosso Deus”. Tantas particularidades de estilo não se explicam apenas pela diferença de objetos tratados, mas também pelas maneiras distintas de confessar e de viver a fé no Deus único.
Num plano mais artístico, enfim, pode-se comparar a extrema sobriedade de uma narrativa como a da vocação de Abraão (Gn 12,1-4) com o romance pitoresco do casamento de Isaac e Rebeca (Gn 24) ou as aventuras de José (Gn 37; 39-50).
Todos esses fenômenos literários deixam transparecer um longo processo de composição, até se chegar ao conjunto acabado e definitivamente fixado. Na origem, os santuários, os lugares de peregrinação constituíam núcleos em redor dos quais se perpetuavam as tradições orais de tribos ou de grupos de tribos. Todos vinham a eles para celebrar os grandes feitos da história da salvação a Páscoa com a recordação do Êxodo, as Tendas com a recordação da estada no deserto. Os sacerdotes, guardiães e interpretes das leis da aliança herdeiros da tradição mosaica, velavam pela salvaguarda e transmissão das tradições particulares que, pouco a pouco, se agruparam em ciclos ou conjuntos mais vastos, à medida que se estreitavam os laços entre as tribos. À medida que se afirmava a unidade religiosa de Israel, esta supunha a formação de uma síntese ainda mais ampla, que traçasse o destino inteiro do povo a serviço de seu Deus. Tradições religiosas e tradições literárias resultaram assim na formação do nosso Pentateuco: deixaram traços ainda visíveis, graças aos quais se pode ter uma ideia das etapas dessa história, e que dão testemunho da fidelidade da redação final a essas tradições venerandas.
Pode-se comparar o Pentateuco em sua redação final a um terreno de aluvião criado por um rio provindo de uma vasta bacia hidrológica, cujas camadas sucessivas conservam vestígios de sua origem particular. É incumbência da análise literária identificar essas contribuições diversas e ensaiar hipóteses sobre o meio de origem das camadas no seio do povo de Israel, assim como as circunstâncias de sua fixação literária.
Hoje se concorda em reconhecer que quatro correntes principais contribuíram para a formação do conjunto, cada uma das quais projetando sua própria perspectiva sobre a história da aliança e de suas instituições.
A tradição sacerdotal (P). A camada literária mais facilmente identificável é a que dá ao Pentateuco sua atual estrutura geral. Estende se da narrativa da criação do mundo em sete dias (Gn 1,1-2,4a) à morte de Moisés (Dt 34,7-9) e organiza a história em torno a uma sequência de genealogias (Gn 5,1 e notas). Ela passa pelo dilúvio e a aliança com Noé (Gn 9) para alcançar a aliança com Abraão (Gn 17). Além dos patriarcas e da revelação do nome divino a Moisés (Êx 6), ela narra a saída do Egito, depois se detém demoradamente na revelação da lei e das instituições culturais por intermédio de Moisés no Sinai (Êx 25 a Nm 10). As características mais marcantes de seu estilo são as repetições, genealogias, listas, e a predileção por tudo o que concerne ao culto e à liturgia. O interesse dessa tradição pelo santuário (Êx 25-31 e 35-40), pelos sacrifícios (Lv 1-7) e pelo clero constituído por Abraão e seus filhos (Lv 8-10) permite reconhecer nela o testemunho próprio do círculo dos sacerdotes, de onde a denominação de tradição sacerdotal que lhe foi dada, simbolizada pela inicial P (de Priestercodex, código sacerdotal). Por muito tempo considerada proveniente da corrente mais antiga da tradição – notadamente porque é ela que serve de fio condutor a todo o Pentateuco –, sabe-se hoje que essa camada é a de fixação mais recente, embora transmita certo número de materiais antigos. Com efeito, a imagem que ela reproduz das instituições culturais corresponde à organização da comunidade pós-exílica. Na verdade, foi de acordo com essa forma da tradição que a comunidade judaica se reconstituiu depois da grande ruptura do exílio. Foi esse texto que certamente serviu de fundamento para a reforma de Esdras (Ne 8; comparar Ne 8,18 a Lv 23,36). Baseando-se em uma longa tradição oral, ela pode ter sido redigida pelos sacerdotes de Jerusalém durante o exílio na Babilônia, em vista da restauração do culto no templo reconstruído. Ela dá testemunho de que Deus é YHWH do universo inteiro, que todo homem foi criado a sua imagem para servi-lo e adorá-lo. Deus firmou aliança com toda a humanidade por meio de Noé, depois escolheu Abraão para que ele viesse a ser o pai de uma multidão de nações e fez aliança com ele. No seio de sua descendência, Deus separou os levitas, e dentre eles Aarão e sua linhagem, para oferecer o culto em nome de todo o povo. É no santuário sobre o qual repousa a graça divina que se realiza o encontro salvífico entre Deus e os homens, graças à mediação de Moisés e do sumo sacerdote Aarão.
Esta sucessão de alianças concêntricas confere ao conjunto do Pentateuco sua majestosa ordenação, mas não se deve perder de vista que se trata de uma visão super elaborada e relativamente tardia da história das origens. Não é de causar surpresa que um documento-programa desses tenha sido utilizado para o arremate redacional de todo o Pentateuco, com o enquadramento e reorganização dos materiais mais antigos da tradição.
A tradição deuteronômica (D). Uma segunda camada é facilmente resgatável – porque não se mescla facilmente com as outras e se caracteriza por um estilo muito particular. É a tradição compilada no Deuteronômio, designada pela letra D. Centrada no ensinamento da lei, renuncia ao plano cronológico da uma história das origens. Seu gênero literário é o da pregação, com a conclamação à obediência, as exortações, ameaças e as promessas. As múltiplas prescrições da lei são articuladas com o mandamento central do amor a Deus (Dt 6,5 e notas). Mas a catequese da lei se refere constantemente aos eventos da história, dos quais ela ressalta a atualidade (Dt 1,10 e nota): a saída do Egito (Dt 16,3), a promessa de uma boa terra feita aos pais (Dt 4,31 e nota) e mesmo a criação do mundo (Dt 4,32 e nota). Ela evoca também o bezerro de ouro e as infidelidades do povo no deserto (Dt 9,7ss.), a fim de advertir Israel e de levá-lo a escolher entre a vida e a morte (Dt 30,15ss.).
A exigência de um santuário único (Dt 12) permite pôr essa obra literária em relação com a reforma do culto realizada pelo rei Josias em 622 a.C. (2Rs 22-23), ainda que o “livro da lei” - que é a sua base – seja provavelmente uma versão breve e primitiva do livro do Deuteronômio. A atenção reservada aos levitas (Dt 18,1-8) e seu papel de detentores da lei (Dt 33,8-11; 17,18) e de pregadores juntamente com Moisés (Dt 27,9) indicam que essa tradição é a mesma que se transmitia no círculo dos levitas dos antigos santuários do interior, porta-vozes do ensinamento de Moisés. Pode ser que ela tenha recebido sua primeira fixação escrita após a queda do reino do Norte (em 722 a.C.), entre os levitas do Norte refugiados em Judá, ou, de acordo com outra hipótese, entre os sábios agregados à corte de Jerusalém. Mas foi submetida a numerosos desenvolvimentos ulteriores, até o tempo do exílio (Dt 4,25ss.).
O longo trabalho de redação deuteronomista não atingiu apenas o Deuteronômio. Enriqueceu visivelmente várias passagens mais antigas do Êxodo (por exemplo. Êx 12-13; 32-33) e até do Gêneses (Gn 18,17-19), onde se podem reconhecer seu estilo e vocabulário. Alias, é nessa perspectiva que também se organizou a grande síntese da história subsequente, da entrada na terra à queda de Jerusalém, tal como registrada nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis, cujo prefácio se encontra nos três primeiros capítulos do Deuteronômio. Essa forma deuteronômica da tradição marcou profundamente o testemunho de todo o Antigo Testamento, com sua insistência no Deus único, na fidelidade à promessa, na eleição gratuita de um povo a quem ele dá terra e instituições, e cuja lei é para aqueles que a praticam fonte de vida e alegria.
Tradições mais antigas. Se agora lançarmos o olhar para os trechos mais antigos, veremos que o Pentateuco toma proporções mais modestas, traindo, embora, sua origem diversificada. As camadas aqui são mais difíceis de identificar, pois a redação definitiva deslocou-se parcialmente para integrá-las como peças que dão autoridade ao escrito. Suas características literárias levam a crítica a reconhecer aqui duas formas primitivas da tradição, uma das quais relativamente bem-conservada, enquanto a outra subsiste apenas em fragmentos esparsos.
A tradição javista (J). A primeira camada decorre da tradição que chama Deus por seu nome pessoal “YHWH” desde as origens (Gn 4,26). Por isso, ela se chama javista e é designada pela inicial J. A exemplo da camada sacerdotal, narra a história das origens a partir da criação do homem (Gn 2,4b-25) até a morte de Moisés (Dt 34,5-6). Suas primeiras páginas registram a história de Israel no quadro da humanidade criada para a vida (Gn 2), mas marcada pela recusa a escutar Deus (Gn 3) e pela violência (Gn 4). A paciência de Deus para com os homens pecadores é assegurada a Noé e a sua descendência (Gn 6-8), em vista de uma bênção que Deus promete a Abraão para todas as nações (Gn 12,1-4a). Os ciclos narrativos de Abraão e Jacó demonstram como a promessa se cumpre para aqueles que creem. A partir da missão de Moisés ante a sarça ardente (Êx 3), a camada literária J narra de maneira particular o enfrentamento entre Deus e Faraó, a saída do Egito, a travessia do mar (Êx 14) e alguns episódios da caminhada no deserto rumo ao Sinai, onde Moisés e os anciãos celebram com Deus uma refeição de aliança e recebem a lei, talvez sob a forma sintética do ritual de Êx 34,14-26. Essa camada se encontra ainda nas últimas narrativas da caminhada no deserto, do Sinai à Terra prometida (Nm 11ss.), e na história de Bilêam (4º oráculo Nm 24,15-19).
A narração javista conservou o caráter pitoresco e a variedade das tradições orais relacionadas a certos santuários e ao folclore do clã. Ela se caracteriza pelo estilo concreto, colorido cheio de margens, quase ingênuo de um contador de histórias (os filhos de Noé, Gn 9,18-27; a torre de Babel, Gn 11,1-9), que não hesita em falar de Deus em termos muito expressivos, como se estivesse falando de um homem: “Eles ouviram a voz do Senhor Deus que passeava no jardim ao sopro do dia”(Gn 3,8); “O Senhor fechou a porta atrás de Noé” (Gn 7,16); “Abraão percebeu três homens de pé perto dele” (Gn 18,2). A originalidade de J consiste em que suas múltiplas narrativas foram organizadas em uma história que vai da promessa a seu cumprimento. Não ocultando nenhum dos pecados do homem, nem sua condenação por Deus, essa narrativa dá testemunho dos atos de salvação de um Deus que dispersa sua bênção a Abraão e sua descendência, a fim de fazê-la atingir todas as nações da terra.
A origem e a data de fixação por escrito dessa corrente da tradição são muito discutidas. A redação pode até ter sido processada em várias fases. A dominação prometida para sempre a Judá sobre seus irmãos (Gn 49,10; cf. Gn 37,26) poderia indicar que a origem dessa tradição deve ser procurada em Judá, em meio próximo à monarquia davídica. O “dominador que surge de Jacó” (Nm 24,19) seria uma alusão a David ou a um de seus sucessores? A tradição “J” teria a intenção de fazer o Estado davídico recordar que, se ele se tornou uma nação inumerável (Gn 12,2; Sm 7,23; 1Rs 3,8), foi por favor de uma promessa divina, da qual agora ele deve ser portador em benefício dos outros povos da terra.
A tradição eloísta (E). Vários fragmentos narrativos, quase sempre combinados com a camada J, distinguem-se pela utilização do nome genérico “Elohim” para falar de Deus nas narrativas que precedem a revelação do nome YHWH. Daí o nome eloísta dado a essa camada, com a inicial E. Outras características literárias acompanham esta feição e permitem detectar importantes vestígios dessa corrente: a passagem de Abraão e Abimélek (Gn 20), o sacrifício de Abraão (Gn 22), provavelmente uma grande parte da história de José (cf. Gn 50,20), mas também a infância de Moisés (Êx 2), a revelação do Nome (Êx 3,14), e a visita de Iitrô (Êx 18). Aparentemente, é dessa camada que deriva a mais primitiva coletânea das leis do Pentateuco, o “Código da aliança” (Êx 10,23-23.33). A partir daí, o rastreamento se complica, a ponto de ser necessário renunciar a isolar E da camada J.
Algumas narrativas trazem uma perspectiva particular: insistem na distância entre Deus e o homem. É necessário que um anjo intervenha, ou mesmo um homem (Gn 22,11-18; 32,23-33), para evitar que o próprio Deus se imiscua em uma atividade exclusivamente humana, o que às vezes confere a Deus um aspecto temível. A atitude justa do homem perante Deus é aqui frequentemente expressa pelo termo “temor”, que significa, ao mesmo tempo, a relação de intimidade e de obediência (Gn 20,11; 22,12). Ora esse termo é característico da piedade dos círculos próximos aos profetas Elias e Eliseu (Rs 18,3; 2Rs 4,1). A figura do profeta serve de modelo para descrever o papel de Moisés (Nm 11,25), ou mesmo o de Abraão (Gn 20,7). Alguns também atribuem a origem dessa corrente tradicional ao reino do Norte. Pode-se supor que a tradição E tenha sido compilada em Judá após a destruição do reino do Norte em 722 a.C. O último redator da narrativa J (que à vezes é chamado de jeovista = JE) teria integrado à redação elementos eloístas, sem que se possa afirmar se se tratava de passagens isoladas ou de uma obra coerente da qual ele sacrificara grande parte.
A composição definitiva do Pentateuco. A unidade do povo de Deus, fundada sobre a unicidade do próprio Deus, tornou indispensável a conjunção gradativa dessas diversas formas de tradição. Várias gerações de redatores se dedicaram a isso: eles remanejaram e retocaram o conjunto, mas a preocupação de nada desperdiçar da herança dos pais levou-os a respeitar, o mais possível, a especificidade dos testemunhos antigos.
Outras hipóteses foram elaboradas para explicar a composição do Pentateuco. Se alguns crentes defendem a opinião dos antigos, segundo a qual Moisés redigiu o Pentateuco inteiro, outros autores afirmam que a maior parte das coletâneas de lei se explicam sobretudo pela combinação de partes inicialmente independentes (a hipótese dos “fragmentos”). Outros ainda pensam que a coesão do conjunto como um todo postula a existência de um escrito fundamental, longamente ampliado depois (hipótese “dos complementos”). Não obstante, postas em debate todas essas perspectivas, a redação por camadas sucessivas parece ser hoje a hipótese mais pertinente, por explicar, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade do Pentateuco. Ela proporciona uma leitura em profundidade dessa vasta obra, põe em foco sua mensagem como abordagens diversas do mesmo mistério: J, mais psicológica; E, e mais preocupada em atentar a transcendência; P, mais atenta às realidades jurídicas e cultuais; D, valorizando a eleição e o amor.
Sentido religioso. A religião do Antigo Testamento, como a do Novo, é uma religião histórica: funda-se na revelação feita por Deus a determinados homens, em determinados lugares e circunstâncias, e nas intervenções de Deus em determinados momentos da evolução humana. O Pentateuco, que reproduz a história dessas relações de Deus com o mundo, é o fundamento da religião judaica e tornou-se seu livro canônico por excelência, sua lei.
Ali encontrava o israelita a explicação do seu destino. Não apenas tinha, no começo do Gênesis, a resposta às interrogações que todo homem se faz sobre o mundo e a vida, sobre o sofrimento e a morte, mas encontrava também resposta para seu problema particular: Por que (Yaohu) – YHWH, o Único, é o Deus de Israel? Por que Israel é seu povo entre todas as nações da terra? É porque Israel recebeu a promessa. O Pentateuco é o livro das promessas: a Adão e Eva após a queda, o anúncio da salvação longínqua; o Protoevangelho, a Noé depois do dilúvio, a certeza de uma nova ordem do mundo; e a Abraão principalmente. A promessa que lhe é feita é renovada a Isaac e a Jacó e interessa a todo o povo deles nascido. Essa promessa se refere imediatamente à posse do país em que viveram os Patriarcas, a Terra Prometida, mas implica outras coisas mais: significa que existem entre Israel e o Deus dos Pais relações especiais, únicas.
Pois Yaohu chamou Abraão e nessa vocação já se prefigurava a eleição de Israel. Foi Yaohu que fez dele um povo e deste povo seu povo, por uma eleição gratuita, por um desígnio amorável, concebido desde a criação e continuada através de todas as infidelidades dos homens.
Essa promessa e essa eleição são garantidas por uma aliança. O pentateuco é também o livro das alianças. Uma já é feita, embora tácita, com Adão; ela é explícita com Noé, com Abraão, com todo o povo, enfim, pelo ministério de Moisés. Não se trata de um pacto entre iguais, pois Deus não o necessita e é ele quem toma a iniciativa. No entanto, ele se compromete, se obriga de uma certa maneira pelas promessas que faz. Mas exige, em contrapartida, a fidelidade de seu povo: a recusa de Israel, seu pecado, pode romper o vínculo que o amor de Deus formou.
As condições dessa fidelidade estão reguladas pelo próprio Deus. Deus dá sua lei ao povo que escolheu para si. A lei ensina-lhe seus deveres, regula sua conduta conforme a vontade de Deus, e, mantendo a aliança, prepara o cumprimento das promessas.
Esses temas da Promessa, da Eleição, da Aliança e da Lei são os fios de ouro que se entrecruzam na trama do Pentateuco e continuam seu curso por todo o Antigo Testamento. Pois o Pentateuco não é completo em si mesmo: Menciona a promessa mas não a realização, já que termina antes da entrada na Terra Santa. Devia permanecer aberto como uma esperança e uma exigência: esperança nas promessas, que a conquista de Canaã parecerá cumprir (Js 23), mas que os pecados do povo comprometerão e que os exilados recordarão em Babilônia, exigência de uma lei sempre premente, que permanecia em Israel como uma testemunha contra ele (Dt 31,26).
Isso durou até Cristo, que é o termo para o qual tendia obscuramente essa história da salvação e que lhe dá todo o seu sentido. Paulo salienta o significado deste fato, sobre tudo em Gl 3,15-29. Cristo concluiu a Nova Aliança, prefigurada pelos pactos antigos e nela faz entrar os cristão, herdeiros de Abraão pela fé. Quanto à Lei, ela foi dada para guardar as promessas, como um pedagogo que conduz a Cristo, em que estas promessas se realizam.
O cristão não está mais sob o pedagogo, está libertado das observâncias da Lei, mas não de seu ensinamento moral e religioso. Pois Cristo não veio ab-rogar e sim levar à perfeição (Mt 5,17), o Novo Testamento não se opõe ao Antigo, prolonga-o. A Igreja não apenas reconheceu nos grandes eventos da época patriarcal e mosaica, nas festas e ritos do deserto (sacrifício de Isaac, passagem do mar Vermelho. Páscoa. Etc), As realidades da Nova Lei (sacrifício de Cristo, batismo, Páscoa cristã), mas a fé cristã exige a mesma atitude fundamental que os relatos e os preceitos do Pentateuco prescreviam aos israelitas. Mais ainda: em seu itinerário para Deus, toda alma atravessa as mesmas etapas de desapego, provação e purificação pelas quais passou o povo eleito, e encontra sua instrução nas lições que foram dadas a este.
Uma leitura cristão do Pentateuco deve seguir antes de tudo a ordem dos relatos: O Gênesis, depois de haver oposto às bondades de Deus Criador as infidelidades do homem pecador, mostra, nos Patriarcas, a recompensa concedida à fé; o Êxodo é o esboço de nossa redenção; Números representa o tempo de provação em que Deus instrui e castiga seus filhos, preparando a consagração dos eleitos. O Levítico poderá ser lido com mais proveito em conexão com os últimos capítulos de Ezequiel ou depois dos livros de Esdras e Neemias; o sacrifico único de Cristo tornou caduco o cerimonial do antigo Templo, mas suas exigências de pureza e de santidade no serviço de Deus continuam sendo uma lição sempre válida. A leitura do Deuteronômio acompanhará bem o de Jeremias, o profeta de que ele está mais próximo pelo tempo e pelo espírito.
A leitura cristã do Pentateuco. Com a dispersão do povo de Israel, o livro da Lei apareceu como fundamento de sua unidade, como aquilo que fazia dele um povo. A insistência recaiu sobre os aspectos jurídicos: é a fidelidade à Torá, a uma Lei reguladora da vida cotidiana, que permite aos judeus dispersos serem ainda um povo. Esta interpretação farisaica e rabínica não está fechada ao universalismo, mas seu universalismo centra-se no povo judeu e supõe a fidelidade à Lei. Nessa perspectiva, a atualidade da Lei é posta em evidência.
Ao lado da perenidade do judaísmo, a interpretação cristã abre-se o outro tipo de universalismo. Para o cristianismo, as promessas do Antigo Testamento já se realizaram, seu cumprimento deu-se em Jesus Cristo e a nova aliança consumou a antiga. A lei da primeira aliança aparece então como momento de uma história, e, com a abertura da Igreja aos pagãos, insiste-se na ideia de que a palavra de Deus se dirige ao mundo atravessando a continuidade da história. É uma etapa da constituição do povo de Deus, na qual não se deve parar, mas que se deve assumir até o pleno cumprimento.
Os dons de Deus não têm retorno. Por isso o povo judeu conserva aquilo que dele recebeu, mas não é o único a ouvir na Torá uma palavra de Deus. Os cristãos reconhecem a palavra de Deus encarnada em Jesus de Nazaré, que não veio abolir a lei, mas consumá-la (Mt 5,17). Na Lei, descobrem sua própria história. Eles também constituem uma comunidade a caminho, que vise da libertação realizada por Cristo no dia da Pascoa e da espera do reino de Deus. Eles sabem que sua vida está determinada por uma aliança, a aliança que Cristo selou para eles. Eles se alimentam da palavra de Deus e dos sinais de sua misericórdia e fidelidade. Os acontecimentos atestados pelo Pentateuco anunciam e prefiguram a obra que Deus realizou por Cristo na Igreja, do mesmo modo que as instituições da antiga aliança preparam e delineiam as instituições da nova. Para o cristão, o que se diz do Templo e da liturgia aplica-se ao corpo de Cristo, novo santuário sobre o qual resplandece a glória de Deus (Jo 2,21). É assim que o Pentateuco continua a ser uma fonte de vida para os homens de hoje, para aqueles que partilham a fé de Abraão e saúdam ao Cristo a consumação da promessa feita ao patriarca em favor da humanidade.
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